RELAÇÃO COM OS HUMANOS
Poucos animais silvestres para além do lobo se encontram tão relacionados com a evolução, história e cultura da humanidade. Durante o Paleolítico parece ter existido uma relação de culto e admiração para com o lobo, sendo representado nas manifestações artísticas com formas espantosamente realistas e corretas, e nunca com uma atitude ameaçadora. Ainda hoje é possível reconhecer indícios deste relacionamento nas atuais sociedades de caçadores-recoletores (p.ex., povos nativos da América do Norte e Sibéria), onde o lobo é admirado e venerado, reconhecido como um predador eficaz e útil ao ecossistema, alvo de uma relação espiritual complexa e, muitas vezes identificado com indivíduos, tribos ou clãs.
No entanto, com a domesticação dos animais durante o Neolítico, a atitude face ao lobo foi-se tornando mais negativa, essencialmente devido à predação deste carnívoro sobre o gado. Além disso, a perceção do lobo pelas culturas euroasiáticas foi também fortemente determinada pelas suas características sócio-económicas; de forma geral, povos que baseavam a sua subsistência na caça e na guerra, tinham uma imagem positiva do lobo, enquanto que sociedades baseadas na agricultura e pastoreio possuíam uma imagem negativa do lobo uma vez que este constituía uma ameaça ao seu sustento económico. Na Europa, esta perceção diferencial face ao lobo reflete-se no folclore e mitologia das várias civilizações, desde a imagem negativa deste predador junto dos povos germânicos e anglo-saxónicos do norte da Europa, até ao carácter divino e totémico do lobo na cultura Celta e na Grécia e Roma antigas.
O Cristianismo veio trazer uma mudança radical no pensamento do mundo ocidental face ao lobo, sendo utilizado como uma alegoria do mal e das imperfeições humanas e, posteriormente, um símbolo das ameaças à Igreja Católica. Esta visão foi rapidamente assimilada devido ao grande poder político da Igreja na subjugação das culturas que lhe eram contemporâneas. A partir do início da Idade Média, instaura-se uma percepção do lobo ligada ao simbolismo de animal diabólico, sendo considerado uma besta maligna e feroz, devoradora de homens, mulheres e crianças. Ao longo do último milénio, a literatura e o folclore tornaram-se campanhas extraordinárias contra o lobo, como sejam os Bestiários medievais que apresentavam o lobo, de forma negativa e fantasiosa.(Acrescentar ilustração medieval com lobo) Mais recentemente, também as fábulas dos séculos XVII e XVIII, que deram origem a muitas das atuais histórias infantis como o “Capuchinho Vermelho” e apesar de pretenderem ser apenas simbólicas e metafóricas, produziram um efeito profundo na perceção atual do lobo pela cultura ocidental.
Em resultado desta dimensão simbólica, o lobo é protagonista de inúmeros mitos, lendas, estórias e práticas de origem ancestral, mas que ainda estão presentes na memória e tradição oral das comunidades rurais, em particular entre os habitantes mais idosos. É o caso dos vários adágios populares de cariz sentencioso ou da crença de seres humanos que têm a maldição de se tornar ou viver com os lobos, como seja o Lobisomem ou a “Pieira dos Lobos”.
Porém, um dos exemplos mais impressionantes destas manifestações culturais é a utilização de partes do corpo do lobo para a cura de doenças em humanos ou animais domésticos. Com efeito, no noroeste ibérico, a “gola do lobo” foi muito utilizada para combater uma doença que se dizia afetar os porcos domésticos, a Lobagueira. A “gola” era um troço seco de traqueia, retirado de um lobo morto, por onde se passava água que era dada a beber aos porcos, acreditando-se que assim se tratava a Lobagueira.
O folclore rural está ainda repleto de histórias de lobos que atacam, perseguem ou, mais raramente, consomem caminhantes solitários. Com efeito, os ataques a humanos constituem uma das principais causas do medo persuasivo que as sociedades humanas têm do lobo e, consequentemente, da perceção negativa em face deste carnívoro. Episódios de lobos atacarem e comerem pessoas são recorrentes em descrições do século XVIII e XIX, mas as últimas décadas de conhecimento científico sobre o lobo revelaram uma realidade bastante distinta. Apesar de milhões de pessoas circularem em áreas ocupadas por lobos, não existem em tempos recentes casos confirmados de ataques a seres humanos atribuíveis a lobos saudáveis.
Contudo, os poucos casos documentados de ataques de lobos a humanos a nível mundial, referem-se maioritariamente a animais infetados pelo vírus da raiva, com perturbações do seu comportamento normal provocadas por esta doença que afeta o sistema nervoso central, a qual atualmente, está considerada erradicada na Península Ibérica. O lobo receia o homem e evita-o sempre que possível, tornando bastante improvável o ataque a seres humanos.
Além destas manifestações culturais de origem ancestral, existem também os “mitos modernos” associados ao lobo. É o caso da ideia generalizada nas populações rurais de que os lobos atuais são diferentes dos existentes no passado, do ponto de vista morfológico e comportamental, e que resultam de libertações massivas e deliberadas por parte do Estado, de investigadores ou de grupos ecologistas. Esta crença é falsa e parece ter origem numa falta generalizada de conhecimento relativamente à morfologia e dinâmica populacional deste carnívoro. Além disso, dado o antagonismo e desconfiança que gera nas populações locais pode constituir um importante constrangimento aos trabalhos de investigação no terreno e ao desenvolvimento de ações de conservação dirigidas ao lobo.